O impacto da pandemia em cuidadores, mães e pais que trabalham na área de animação

Artigo traduzido do projeto ‘Animation From Every Angle’ da Toon Boom Animation.

Hoje, as mulheres constituem a maior parte da força de trabalho dos EUA, o que resultou em uma mudança notável da tradição de famílias com renda única e uma dona de casa. No entanto, as mães que trabalham fora de casa enfrentam sérios desafios para encontrar um equilíbrio entre a criação dos filhos e as carreiras. Agora, o desafio mais urgente é a pandemia.

Estudos mostram que, em famílias nas quais mãe e pai trabalham fora, as mulheres continuam a assumir a maior parte das responsabilidades domésticas. Essa realidade foi agravada pela pandemia que, junto a ela, trouxe o fechamento de creches e escolas. Nas últimas décadas, a educação infantil tem incentivado a participação das mulheres no local de trabalho graças à oferta de opções de creches durante o dia.

No entanto, a perda desse sistema de apoio durante a pandemia foi um grande revés para as mães que trabalham fora, potencialmente destruindo 10 anos de progresso em igualdade de gênero no local de trabalho. No setor da animação, em que apenas 20% dos criativos são mulheres, o impacto do contágio certamente foi sentido. Para compreender como as mães que trabalham na área da animação lidaram com os desafios dos lockdowns, conversamos com algumas dessas mulheres.

Beth Sleven é uma diretora supervisora ocupada e mãe de dois filhos, de 3 e 6 anos. O marido é dono de casa, o que permitiu que Beth se concentrasse na carreira em tempo integral. “Sempre fui inflexível sobre o fato de manter minha vida profissional e minha vida doméstica separadas. Mas, ao mudar para o trabalho remoto, essa separação tornou-se quase impossível”, disse.

Beth explicou que o colapso da separação entre o trabalho e a vida foi um ajuste difícil de ser feito, mas que ela é grata por um aspecto particular disso. “Não tenho mais o deslocamento diário e não preciso participar de eventos de networking. Ter esse tempo de volta significa que posso almoçar com minha família todos os dias e tenho mais tempo para ficar com meus filhos depois do trabalho. Pude passar um tempo junto com meus filhos, e isso foi especial.”.

Imagem traduzida pela ETC Brasil

Beth nos contou que, no passado, ela sentia a clássica culpa dos pais que trabalham fora, por considerar que não tinha tempo suficiente para ficar com os filhos. Antes do lockdown, era difícil passar um tempo de qualidade com os filhos devido aos dias longos e agitados de trabalho, do trânsito congestionado e dos eventos de networking.

Pesquisas mostram que esse sentimento é comum entre os progenitores, com 20% das mães que trabalham fora relatando que consideram muito difícil conciliar trabalho e família. Para Beth, o lado bom é que o marido é dono de casa: “Sabemos que, para muitas famílias, isso não é uma opção, então nos sentimos muito felizes e privilegiados por conseguir fazer isso enquanto pudermos”.

Para famílias em que tanto o pai quanto a mãe trabalham fora em tempo integral, o trabalho e as aulas remotas exigem soluções complexas. Megan Kreiner é animadora na Walt Animation Disney Studios. Ela e o marido se encaixam nesse perfil e dividem as responsabilidades parentais dos dois filhos, de 7 e 10 anos. Megan disse que já era difícil equilibrar maternidade e trabalho mesmo antes da pandemia: “Definitivamente, há um equívoco sobre a possibilidade de equilibrar carreira e paternidade. Na minha experiência, sempre é preciso ceder para um lado. Ter uma carreira e filhos juntos requer muito sacrifício, especialmente quando os dois pais trabalham fora em tempo integral.”, revelou.

Megan diz que, quando os lockdowns da pandemia começaram, ela e o marido perceberam rapidamente que seria muito difícil acompanhar o trabalho e, ao mesmo tempo, cuidar das aulas à distância dos filhos. Para eles, a solução foi contratar ajuda para o período do dia. A cuidadora vai até a casa da família durante o horário escolar para oferecer uma ajuda extra a fim de manter as crianças ocupadas nas tarefas; dessa forma, Megan e o marido podem se concentrar em seus respectivos empregos.

“Ainda me envolvo no apoio às crianças durante o aprendizado remoto, então pode ser muito difícil manter o foco em tarefas criativas para o trabalho”, disse Megan. “Sem ajuda, é improvável que eu consiga trabalhar em tempo integral”. Contratar uma cuidadora particular foi extremamente útil para a família de Megan, mas pode não ser uma solução acessível a todos os trabalhadores.

A experiência das mulheres na força de trabalho também pode variar dependendo da idade dos filhos. Jeanette Moreno King é diretora de animação, presidente da The Animation Guild e mãe de dois filhos, de 11 e 14 anos. Ela diz que os filhos têm idade suficiente para se manterem independentes ao longo do dia durante as aulas virtuais.

Imagem traduzida pela ETC Brasil

Jeanette explica que é difícil lidar com o custo emocional da pandemia: “Tem sido difícil manter o ânimo dos meus filhos alto e motivá-los. Eles estão acostumados a ter um componente social na escola e estão perdendo momentos que são muito importantes nessa idade.”, disse. Jeanette nos contou que é difícil convencer os filhos de que tudo vai melhorar, porque eles têm idade suficiente para compreender totalmente o impacto da pandemia. “Como mãe, você quer deixar tudo melhor para seus filhos, e dói quando não consegue fazer isso”, afirmou a diretora de animação.

No setor há mais de duas décadas, Jeanette está bem ciente dos vários obstáculos que as mães que trabalham na área da animação enfrentam. Ela contou que, quando começou nessa área, não se falava em criação de filhos no trabalho. “Quando engravidei pela primeira vez, parecia que eu precisava aprender o aperto de mão secreto para poder conversar com os outros pais. Ninguém falava sobre a vida familiar.” Mas, ao longo dos anos, ela viu uma mudança.

King disse que, a cada nova geração que entra no campo da animação, as normas tradicionais do local de trabalho mudam. “Percebi que as gerações mais jovens de pais e mães são muito mais abertas e honestas sobre as dificuldades que têm ao conciliar trabalho e família. Costumava haver uma postura de martírio para trabalhar neste setor, mas isso está desaparecendo. Ao invés disso, conversamos mais sobre como o campo da animação pode apoiar não apenas as mães, mas toda a família.”.

De acordo com a presidente da The Animation Guild, essa mudança também se reflete lá. A Guild é uma organização sindical que representa artistas de animação e efeitos visuais. Historicamente, os sindicatos têm se concentrado em questões de trabalho tradicionais, como segurança no trabalho, salários e benefícios de saúde. Jeanette atestou que, nos últimos anos, a organização reconheceu a importância de oferecer auxílio além das questões tradicionais. “Estamos percebendo que a Guild pode ser um centro de comunicação que auxilie as pessoas com todos os tipos de problemas relacionados ao local de trabalho, inclusive à paternidade”, disse.

Em apoio à essa mudança, criaram um canal no Discord para os membros da Guild. O Discord é uma plataforma de mensagens instantâneas e distribuição digital projetada para a criação de comunidades. Nela, os membros podem discutir sobre tudo: “É um espaço acessível para os membros se conectarem, dividirem experiências e oferecerem conselhos e incentivo uns aos outros”, completou. Jeanette explicou que iniciativas como essa estão mudando a maneira como as pessoas se comunicam no local de trabalho, graças à normalização da vulnerabilidade. Quando ela começou a carreira, parecia que nunca poderia demonstrar esse estado.

Se eu fizesse isso, as pessoas poderiam atribuir ao fato de eu ser uma mulher. Fico feliz em ver isso mudando.

Jeanette Moreno King sobre a normalização da vulnerabilidade
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Outra iniciativa da Animation Guild que está incentivando abordagens novas para o apoio no local de trabalho é o Family and Membership Committee (Comitê FAM). Kristin Donner, presidente do comitê, nos disse que a sua equipe percebeu, rapidamente, que não haveria uma solução padrão para todos os desafios que os membros desse comitê enfrentavam com o trabalho remoto.

Kristin diz que isso ocorre, porque as necessidades de cada membro são únicas; por exemplo, quando os pais de uma criança precisam de um tipo de apoio diferente dos de adolescentes. “Além disso, os obstáculos nem sempre estão diretamente relacionados à criação dos filhos”, concluiu. “Desde o início da pandemia, o Comitê FAM enfatizou ainda mais a importância do bem-estar e da saúde mental. Criamos um espaço seguro para que os membros dividissem histórias e experiências.”.

Embora seja conhecido como um comitê de “família”, ele não é exclusivamente para pais e mães. De acordo com Donner, o conselho existe para oferecer uma comunidade de apoio em qualquer fase da vida dos membros. “Sentimos que é importante reconhecer as diversas formas de família e as diferentes dinâmicas de cuidado. Alguns de nossos membros podem não ser pais ou mães, mas podem estar cuidando de um ente querido idoso, ou auxiliando um parceiro ou amigo doente. Independentemente de como você define sua família, ou que tipo de responsabilidades você tem em sua vida pessoal, é possível encontrar apoio no FAM.”.

Kristin, assim como as outras mulheres que conversamos, disseram que acreditam que o trabalho em casa, estimulado pelo cenário atual, pode resultar em mudanças positivas que perdurem após a pandemia. Quando as equipes de animação começarem a voltar a trabalhar no estúdio, Megan Kreiner espera que a flexibilidade seja mantida, bem como conversas mais amplas sobre as percepções em torno do apoio aos pais e à família: “Na minha experiência, há uma percepção de que os pais e as mães são menos dedicados ao trabalho. Precisamos continuar a desafiar essa percepção, porque isso não é verdade.”.

Em todos os setores, essas percepções podem perpetuar a disparidade salarial da maternidade, também conhecida como castigo da maternidade. Quando homens e mulheres entram no mercado de trabalho, geralmente são pagos da mesma forma. Uma desigualdade salarial, entretanto, começa a surgir quando as mulheres se casam e têm filhos. Embora algumas mulheres optem por trabalhar menos depois de terem filhos, muitas não fazem isso. Apesar disso, uma pesquisa mostra que os empregadores pagam menos a elas porque, aparentemente, presumem que as mães serão menos comprometidas com o trabalho. Isso explica-se melhor, porque apenas 10% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres no setor da animação.

As iniciativas da Animation Guild e do Comitê FAM mostram que, aos poucos, estamos normalizando conversas abertas sobre os desafios de conciliar trabalho e vida pessoal. Isso sinaliza uma mudança na abordagem da cultura do local de trabalho no setor da animação. Ao escutar as diversas experiências de mulheres, pais, mães e cuidadores que trabalham na área da animação, podemos começar a lançar as bases para uma mudança tangível.

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